abril 23, 2007

Para reflectir "A violência, a escola e a violência na escola"


A violência, a escola e a violência na escola
Seguir o impulso de alguém é escravidão, mas obedecer a uma lei auto-imposta é liberdade”
(Rousseau)

I
"A violência é um termo de múltiplos contornos, amplamente debatido por diversas correntes filosóficas e políticas, desde o advento da modernidade, a partir do século XVIII, mas já presente no pensamento ocidental desde a idade clássica. Não cabe aqui discutir as variadíssimas dimensões da violência (física, simbólica, política, violência estrutural, violência revolucionária, violência reactiva...) ou outras noções a ela associadas (como a força, a ameaça, o assédio moral, o stress, a criminalidade, o constrangimento, o medo, o poder, etc.). Convém, no entanto, sublinhar desde logo que se trata de um tema de grande complexidade e que ao mesmo tempo permanece muito actual. Para além de me encontrar neste momento no Brasil, um pais onde o assunto adquire particular gravidade, sabemos bem como os problemas sociais e políticos (em especial os político-militares) que atravessam o mundo actual, com os fundamentalismos, as agressões militares e a guerra, enfim, o terrorismo e toda uma panóplia de preconceitos, divisões, exclusões e autoritarismos de diversos tipos – sem esquecer o lado mediático e espectacular que envolve muitos destes fenómenos –, conferem às sociedades actuais uma variedade de formas de violência que ate há poucos anos atrás se julgavam ultrapassadas.
No caso da violência ligada ao ensino e ao sistema escolar, também muito se tem escrito e discutido. Por um lado, é preciso lembrar que o principal papel do sistema de ensino não é apenas “ensinar”, mas antes inculcar, enquadrar e disciplinar as novas gerações, preparando-as para a entrada na vida adulta não só através da aprendizagem e da aquisição de “competências” ou de uma “formação” adequada mas principalmente através da imposição de todo um conjunto de normas e valores culturais e ideológicos, aos quais importa aderir como requisito primeiro para que os saberes e conhecimentos transmitidos pela escola se tornem legítimos e eficazes. A escola funciona, assim, como principal instância de socialização e integração, ou seja, de reprodução do sistema social. E o sistema de ensino tende a veicular os valores e códigos de conduta típicos da “classe-média”, o segmento social que mais abertamente adere ao sistema vigente e ao mesmo tempo aquele onde genericamente se inserem os professores e funcionários que alimentam esse mesmo sistema. Quer isto dizer que o sistema de ensino encerra em si mesmo abundantes formas de violência simbólica.
Apesar disso, como sabemos, a herança do Iluminismo e a racionalidade moderna não deixaram de ver na educação uma esperança libertadora e emancipatória da humanidade, condição de progresso e factor decisivo para a realização do contrato social e a consolidação da democracia. Por outro lado, não esqueçamos que diversas correntes de pensamento, como aquelas inspiradas em Rousseau, Marx ou Rancière, passando pelo anarquismo e pela teologia da libertação (cf. Paulo Freire, A Pedagoia do Oprimido), desde sempre procuraram formas revolucionárias de emancipação fundadas na acção educativa e nas pedagogias alternativas. Concebendo as instituições oficiais de ensino como limitadoras e até mutiladoras do potencial humano e das culturas e saberes das comunidades, estas experiências tiveram, e continuam a ter, em especial na América Latina, uma implantação significativa.
II
Nas favelas do Rio de Janeiro (nomeadamente a famosa Rocinha) continuam em marcha experiências que seguem esta linha. Cito uma passagem de um texto de Rodrigo Torquato da Silva (pedagogo que desenvolve trabalho de pesquisa-acção, e morador na favela), falando do seu trabalho no projecto Pré-vestibular Comunitário da Rocinha (PVCR): «os ‘sábios-iluminados’ do saber oficial recorrem aos mecanismos e pressupostos de um ensino universal, que pretende instruir uma grande quantidade de pessoas, homogeneizando a forma de raciocinar e funcionando como antolhos que não permitem enxergar nem percorrer outros caminhos. O risco para aqueles que ousem subverter essa lógica é o de serem acusados de levianos ou até de profanadores dos cânones científicos. No PVCR os actores sociais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem encontram-se num constante conflito entre esses dois pólos. Fundamentado em bases contraditórias, porém complementares, esse movimento de educação popular ao mesmo tempo em que prepara os alunos, através de alguns ‘treinamentos’, para os exames do vestibular, almeja que estes, a partir da reflexão-acção, construam redes de intersubjetividades emancipatórias. Através de um eixo programático criado com a intenção de integrar temas políticos e sociais para problematizar a situação existencial do grupo (que vive em contextos cuja violência urbana se faz constantemente presente) e a sociedade em geral, pretendemos desenvolver uma escolarização diferenciada, para que, ao chegarem às universidades, os alunos estejam dispostos a entrar nos embates pela democratização do acesso ao ensino superior e da própria sociedade» (jornal A Página, nº 163, Janeiro, 2007).
Ora, a violência que se vem avolumando nos meios escolares dos países ocidentais e europeus – nomeadamente em Portugal – certamente que tem por trás de si causas muito diversas. Mas é provável que a lógica homogenizante que o sistema escolar pretende impor a cada comunidade, aliada à falta de meios das escolas e de preparação de muitos professores estejam na raiz do problema. Há autores, como Bernard Charlot (“Violência na Escola: como os sociólogos franceses abordam esta questão”, Sociologias, Porto Alegre, ano 4, nº8, jul/dez 2002), que distinguem entre violência na Escola (a que ocorre no espaço escolar mas é oriunda do exterior, grupos delinquentes que vandalizam a escola, trafico de drogas que actua no seu interior, etc), violência da Escola (violência institucional e simbólica ligada à própria escola, enraizada no próprio sistema, formas de avaliação, punições disciplinares, etc); e violência contra a Escola (acções dos alunos como agressões ou insultos aos professores, violência que visa directamente a instituição ou os seus representantes). Assim, uma parte dos factores que induzem a violência na escola não dependem exclusivamente do próprio sistema de ensino e por isso a escola por si só é incapaz de lhes dar combate.
III
Seja como for, é fundamental não esquecer que, com todas as nuances e formas variadas de que reveste a violência na escola, a generalidade das ocorrências de actos violentos tem lugar entre os alunos e eles são igualmente as principais vítimas. Como é óbvio, com isto não se pretende validar ou menosprezar a gravidade dos actos de agressão e violência física verificada contra professores. Tais casos, ainda que esporádicos em comparação com o conjunto de situações que ocorrem no quotidiano da escola, são, em minha opinião, particularmente preocupantes. Mas, para além da autoridade em perda quer da escola quer do professor (perante os alunos e a sociedade), é importante antes de mais, procurar enquadrar o problema no seu contexto mais geral.
Num Relatório das Nações Unidas sobre Violência Contra as Crianças, recentemente publicado, há um capítulo dedicado ao bullying onde se apresentam estatísticas de um largo conjunto de países. Este termo refere-se às formas de agressão, verbal ou física contra crianças ou adolescentes que, por qualquer motivo escapam à “norma” do grupo e não conseguem integrar-se na comunidade escolar. Trata-se de formas de segregação e discriminação, por exemplo através da piada em que a criança se torna o alvo predilecto e repetido da chacota, da humilhação e do evitamento, com uma carga de violência simbólica maior ou menor, e cujas consequências para a vítima podem ser devastadoras para a sua trajectória escolar e pessoal. Os resultados do inquérito incluído no estudo assinalam respostas de alunos de 11, 13 e 15 anos que indicaram ter sido vítimas desse tipo de comportamentos (bullying) nos últimos 2 meses, e onde Portugal aparece em segundo lugar dessa lista, por ordem decrescente das percentagens mais elevadas:
Lituânia: 64%-Femin; 65%-Masculino; Portugal: 44%-F; 56%-M; Letónia: 45-F; 52%-M; Ucrânia 48-F; 50%-M; Áustria 41-F; 48%-M; Estónia 42-F; 47%-M; Suiça 39-F; 42%-M; Rússia 35-F; 40%-M; Bélgica 30-F; 40%-M; Alemanha 34-F; 40%-M; Canada 37-F; 38%-M; EUA 33-F; 36%-M; Noruega 30-F; 35%-M; França 36-F; 34%-M; Polónia 27-F; 33%-M; Reino Unido 32-F; 32%-M; Holanda 27-F; 32%-M. World Report on Violence Against Children, ONU – Office of the High Commissioner for Human Rights. Outubro, 2006 (
http://www.violencestudy.org/).
Um outro estudo desenvolvido em Portugal em 2001 (por Emília Costa e Dulce Vale), concluiu que a agressão mais referida pelos alunos portugueses que dela foram vítimas é a física e a verbal: 63% dos alunos referem já ter sido empurrados, 29% referem já ter sido batidos, 67% foram insultados e 54% já foram ameaçados com palavras ou gestos. As autoras referiram ainda ao "número elevado" de raparigas que afirmou ter sido alvo de comportamentos indesejados com conotação sexual, sem, no entanto, especificarem esse valor. Um aluno em cada dez já foi abordado no sentido de adquirir ou consumir drogas e um em cada quatro referiu ter sido assaltado, roubado ou vítima de destruição de propriedade (estudo citado por Ricardo Jorge Costa no artigo “Violência na Escola – verdadeira ou falsa questão?”, A Página, Abril 2001).
As Nações Unidas e a UNICEF assumem no relatório citado que a escola não tem conseguido dar combate eficaz a este problema. Expulsar os protagonistas responsáveis pelos actos de violência ou de bullying não é solução, pois isso significa apenas transferir ou reproduzir o fenómeno noutros contextos da comunidade ou da sociedade mais geral. As pedagogias pró-activas, os programas sociais de base local ou regional, as actividades extra curriculares, projectos e iniciativas culturais e lúdicas que envolvam os jovens, iniciativas no campo desportivo, formação cívica e cultural, são algumas das acções que requerem não só mais investimentos e recursos da parte do sistema educativo e das instituições públicas, mas igualmente o envolvimento em rede de outros actores, ONGs viradas para o desenvolvimento local e educativo, associações de pais e entidades locais. A Escola, as comunidades envolventes e a sociedade só podem funcionar em estreita cooperação. Se muitos dos problemas das escolas vêm do exterior, só articulando-se e dirigindo-se ao meio que as envolvem, elas podem encontrar o dinamismo e as possíveis respostas para esses problemas".
Publicada por Elísio Estanque em boasociedade.blogspot.com

Sem comentários: